terça-feira, 27 de dezembro de 2011

“COM QUE SE PODE JOGAR”



Luci Collin, uma das melhores escritoras da atualidade, leva-nos por um labirinto formado por personagens femininas. A miséria está presente em “COM QUE SE PODE JOGAR” (Editora Kafka, 148 p., 2011). Sem dar sermão, Collin consegue fazer uma crítica social profunda.

Na obra aparecem elementos que fazem parte da vida das pessoas: o bingo beneficente da igreja, o filho que vai e não volta, os presentes (xale verde e colônia) que fazem a moça chorar, a maconha, o psicólogo, a adoção, a solidão, ou mais que solidão, o vazio existencial, que está na essência dos personagens. A vida parece empurrá-los como o vento que Ana teme, esse vento “que faz vergar os eucaliptos”, do mesmo jeito que o vento dos acontecimentos açoita as vidas.

A orelha do livro é assinada por Valério Oliveira (um dos heterônimos de Nelson de Oliveira). Ele revela o espírito do livro ao dizer: “Luci Collin moldou essas mulheres para o livre-arbítrio e as soltou no tabuleiro. Agora elas estão sofrendo as consequências”. E é isso mesmo, elas falam e se mexem diante de nossos olhos, imaginamos seus traços e seus gestos. Depois Valério afirma que o livro “tem um enredo claro, sólido”. É interessante como podemos fazer leituras tão diferentes da mesma obra, porque serei honesta, eu achei o romance de Collin muito sólido, mas de fundo tão escuro quanto a caverna de Platão.

“COM QUE SE PODE JOGAR” não é um livro de fácil interpretação, não tem frases piegas, nem foi elaborado para enfeitar a caverna em que vivemos. Pessoalmente, senti medo de perder alguma palavra, de não reparar em alguma ideia, de passar por alto de alguma sutileza. A sensação é que Luci Collin nos lança na escuridão. Esse livro é quase um prolongamento de arranhões sobre a cera da falsidade contemporânea. É completamente escuro. É um livro de angústias e solidões. Tenta claramente rebater a beleza do mundo contemporâneo – um mundo de falsos encantamentos.

Um verso do poema “Partículas & parâmetros da investigação particular” de Valério Oliveira diz: “Tudo é falso, tudo é cafona e azul”. E vivemos nesse mundo virtual, glamoroso, tudo azul. E nem sempre estamos dispostos a olhar a realidade. Talvez por isso o livro de Luci Collin convoca e provoca. Convoca nosso espírito e nos provoca a olhar para além das miragens.

O livro está dividido em três partes, cada uma tem o nome de uma mulher: a primeira parte é dedicada à Ana, a segunda, à Melanta e a terceira, à Lena.
Ana não acredita na Justiça. Ela pergunta: “que tamanho eu tenho quando sinto que não caibo nesse quarto nem no meu corpo” (p. 43). Nessas palavras talvez Luci Collin encontrou o tamanho da subjetividade humana. Ela não cabe em nossa sociedade. E a personagem continua: “Que imenso eu meço em centímetros ordinários”. Mostrando como o ser humano é medido. Seres humanos parecem mercadorias, são divididos em classe A, B, C, D. O dinheiro é o único elemento alquímico universalmente reconhecido na atualidade. E a personagem continua: “Eu tão somente tão igual número qualquer nenhum nem sei qualquer um”. Revelando o que somos: números. Fazemos parte de estatísticas.

Na segunda parte Melanta sela com uma frase a indiferença e o desamor quotidianos ao dizer de Abel: “Olhe para ele. Só aquilo ali, só aquela criatura sem sorte é que meu irmão conseguiu ser na vida” (p.67). O fracasso e o desamor carcomem a vida das personagens, como carcomem a sociedade contemporânea.

Na terceira parte, Lena, Maria Helena Vignoli Munhoz, 25 anos, tem seu passado revelado: “Minha mãe coisa nenhuma – é só uma ricaça que me comprou. É, comprou, foi lá, escolheu um bebezinho bem subnutrido, o pior de todos, o mais fudido, e deu um dinheiro e me levou” (p.99).

As três mulheres são sacudidas pelo vento, esse “vento que faz vergar os eucaliptos”. Elas estão unidas por um fio invisível e por um nome. Esse fio só é revelado no último capítulo.

“COM QUE SE PODE JOGAR” açoita ao leitor. Quase uma ventania. Um livro de composição muito bela. Vale a pena conferir.



“COM QUE SE PODE JOGAR” (fragmento – p.23)
“Nesse silêncio vi as perguntas formando fila e calmamente apanhando as ferramentas de corte. E no silêncio compreendi a esfoladura a escavação o esmerilhamento. Eu percebi que uns saem ilesos — lhes é permitido desconhecer as agruras da esfoliação e igualmente a pressão irreversível do torno. Também percebi que outros — esses todos nós que não seremos poupados — terão que aguardar pelas respostas. Achando injusto, a princípio, e depois cedendo, e depois aceitando, assumindo a condição de ser em segundo plano. Nesse silêncio pude entender a espera, ou pelo menos tentei me aproximar de uma definição.”

Resenha de Isabel Furini, publicada no ICNews.

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